“- Crianças costumam inventar detalhes que não existem. Não sei se é imaginação deles ou se falam com os amigos ou com os pais. Sempre se assume que crianças não mentem. Infelizmente, elas mentem com freqüência.”

A perigosa afirmação acima pertence ao filme dinamarquês “A Caça” (Jagten) vencedor de sete Robert Awards (espécie de Oscar dinamarquês) – incluindo melhor ator para Mads Mikkelsen (Hannibal, King Arthur, 007 Casino Royale), melhor filme e melhor diretor para Thomas Vinterberg (Festa de Família) -, e que agora concorre ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro.

Traz a história de um professor de jardim de infância, Lucas (Mikkelsen), que se vê acusado injustamente de pedofilia por uma das crianças da escola e que também é filha de seu melhor amigo. Imediatamente, o professor se vê destituído de seu cargo e logo se inicia a investigação policial a seu respeito. Por falta de provas ele não é preso, mas sofre todo o tipo de exclusão social relegada àquele que carrega tal acusação pesando sobre a cabeça. Esta se baseia na máxima de que “crianças não mentem” como aparece em vários momentos do filme.

E de fato, crianças não mentem – levando em conta as devidas exceções para evitar generalismos. Não no sentido estrito da palavra, não deliberadamente e também, não no caso de Klara (Annika Wedderkopp), a garotinha que desencadeia toda a situação.

No mesmo dia da acusação Klara foi exposta a um tipo (provavelmente) inconsciente de abuso sexual infantil. O irmão mais velho, um adolescente de aproximadamente 14 anos junto com um amigo mostraram para a criança imagens de um filme pornô e disseram a frase que ela usaria mais tarde. O impacto no psicológico de Klara foi tão grande que sua mente provavelmente se defendeu da melhor maneira possível, criando subterfúgios e mesclando acontecimentos díspares. Pouco mais tarde, quando chegou à escola e viu o professor a brincar com as demais crianças o beijou nos lábios. Como um bom educador o faria, Lucas a orienta a beijar apenas ao pai e a mãe. A criança sente-se rejeitada e sua cabecinha infantil acaba por se tornar o terreno fértil para a perigosa intriga.

“A Caça” é um filme polêmico e revoltante cuja tensão acompanha o espectador do início ao fim. Nenhuma cena é desnecessária, nenhuma fala é mal aproveitada, a fotografia contribui para a sensação de enregelamento interno que se tem ao acompanhar uma história com esse tema, e o diretor conduziu a história de modo a não criar divisões maniqueístas. Tem-se os pais de Klara consumidos pelo medo de a filha ter sido violada, o pai como o melhor amigo do suposto violador e dividido entre o ódio, a tristeza e a incerteza, os conhecidos tomando o lado correto, a criança sem entender o que viu, sentiu, ouviu, ostentando a inocência própria da idade (Klara aparenta ter de 4 a 5 anos) e Lucas, que à sua luta particular pelo divórcio recente e pelo direito de ver o filho, soma-se a acusação de abuso sexual e seu conseqüente ostracismo social.

Mads Mikkelsen atua tão bem quanto se espera e sua impotência contra os acontecimentos atrai a solidariedade automática daquele que o assiste. Vê-se claramente a mudança sofrida pelo personagem ao longo da história em sua atuação primorosa.

O título agrega a tradição da prática da caça na pequena cidade em que acontece a história e também serve como metáfora – ainda que pobre e clichê – à situação do personagem. Para além da “caça” no sentido estrito da palavra, a sensação que se tem ao final do filme é que, tão acuado quanto o cervo na campina e mesmo que não morra ou, no caso de Lucas, seja provado algo contra ele, existe e existirá sempre aquela sombra lançada e que não pode ser dissipada.

“A Caça” é uma crítica social forte e indigesta e que nos faz refletir sobre frases feitas como “crianças não mentem”… afinal, verdade e mentira são muito mais complicadas do que o “Sim sim ou não não” nos faz crer.

[Por Cinthia Torres]